
Ensaio em três partes
Parte I – Sobre a Fadiga do Amor e os Escombros da Crença
I. Prólogo – A Insistência do Amor
Há temas que resistem à exaustão. O amor é um deles. Não por ser mistério, mas justamente porque deixou de sê-lo. Falamos de amor como se estivéssemos sempre próximos de compreendê-lo, sempre a um passo de elucidá-lo — como se a insistência na palavra pudesse suprir a ausência da experiência. O amor se tornou exausto porque se tornou um lugar comum. Mas há algo que permanece. Talvez não o amor, mas a sua ruína. A linguagem do amor sobrevive à sua prática, como os vitrais resistem à queda das catedrais.
É por isso que, para tratá-lo com o mínimo de honestidade, não basta citá-lo. É preciso desautomatizar a sua gramática. Abandonar os lugares seguros da paixão e da afeição para reencontrá-lo onde ele de fato persiste: no modo como suportamos o outro, na medida com que o mundo nos impõe limites, e na forma com que respondemos a esses limites sem dissolvermos nossa integridade.
A cartomancia entra aqui — não como resposta, não como oráculo, mas como um instrumento de escrita alternativa, como um ato de leitura simbólica do tempo vivido, que se utiliza do acaso para dar forma ao indizível. As cartas não revelam o amor, tampouco prometem sua chegada. Mas podem, se lidas com inteligência, nos devolver algo que perdemos: o poder de nomear sem fetichizar, de ler sem acreditar, de ver sem possuir.
II. Amor e Deriva: A Crise da Vontade Contínua
Byung-Chul Han escreveu, com lucidez desoladora, que “o amor requer tempo livre e inútil, algo raro em uma sociedade entregue à aceleração e à produção”. Amor, aqui, não é uma experiência privada, mas uma forma de resistência à lógica produtiva do desempenho emocional.
Já não se ama como antes — e isso não é nostalgia, é diagnóstico. O que antes se construía por convivência, contraste e renúncia, hoje é buscado como suplemento emocional imediato: um amor que resolve, consola, preenche. Busca-se “ser feliz no amor” como se o amor fosse um pacote de serviços: adaptável, eficiente, descomplicado.
Zygmunt Bauman chamou isso de amor líquido. Mas há um erro de leitura em sua proposta: não é a liquidez que o define, é a incapacidade de suportar o peso. O amor deixou de ser suportável porque requer algo que o tempo contemporâneo não oferece: disposição para o sofrimento que não gera retorno visível. O amor maduro — aquele que não depende da euforia da juventude — é sempre um gesto de construção lenta, e por isso mesmo, de alto risco.
Não se trata de buscar alguém “certo” ou de “curar-se para amar”, ideias populares que soam como slogans publicitários disfarçados de sabedoria terapêutica. A pergunta real deveria ser: em que estrutura de mundo ainda é possível o amor, e sob quais condições ele pode sobreviver à fadiga do sentido?
III. Entre Filia e Eros: O Amor Como Forma de Escolha Ética
A tradição clássica sabia o que esquecemos. Aristóteles, em sua “Ética a Nicômaco”, distingue três formas de amizade: por utilidade, por prazer e por virtude. Apenas esta última — a amizade baseada no reconhecimento mútuo do bem e na busca comum da virtude — seria duradoura. Ora, este é, em muitos aspectos, o único amor possível entre adultos conscientes do tempo. A forma mais sólida de relação está na escolha cotidiana de convivência ética, e não no impulso de desejo.
Platão, por sua vez, em seu “Banquete”, oferece o eros como força ascendente, não carnal. Mas mesmo ali, o amor ainda é visto como um trampolim em direção ao inteligível, uma forma de ascese. O amor verdadeiro é o que eleva o espírito — mas essa elevação não é mística. É ética, filosófica, quase política.
Com o passar dos séculos, esse amor foi sendo substituído por versões sentimentais, histéricas, emocionais. Perdemos o senso da medida, e com ele, a possibilidade da permanência.
IV. Cartomancia Sem Crença: O Acaso Como Texto
Aqui, convém esclarecer: não se trata de defender a cartomancia como sistema mágico. Isso seria não apenas ingênuo, mas indigno da inteligência do leitor. O que nos interessa na cartomancia é sua estrutura formal: o modo como uma disposição aleatória de símbolos, quando interpretada sob tensão, revela não o futuro, mas o sujeito que lê.
A leitura de cartas, portanto, não é adivinhação. É performatividade interpretativa. É linguagem em estado bruto — cujas combinações, quando tensionadas por uma pergunta, não produzem respostas, mas ecos e zonas de sentido. O valor está no deslocamento que provocam, e não na verdade que afirmam.
As cartas não dizem: desorganizam, até que o leitor reorganize por si.
O consulente que busca “saber se será feliz no amor” não encontrará, em uma leitura honesta, nenhuma previsão. Mas poderá, ao fim de uma sessão bem conduzida, descobrir o que chama de felicidade, por que a exige, e o que espera que o amor lhe entregue — sem oferecer nada em troca.
V. Contra o Amor Romântico: Entre Séneca e a Dureza da Lucidez
A modernidade tardia nos legou um simulacro de amor: aquele que promete redenção emocional, parceria incondicional, um “par perfeito” que se adequa ao eu como um sapato feito sob medida. A cartomancia, se for conduzida com responsabilidade simbólica, pode desmantelar essa ilusão.
Séneca, em suas “Cartas a Lucílio”, alerta contra o excesso de expectativa afetiva: “Não te tornes escravo de teus sentimentos. Ama como quem pode perder.” Essa frieza estóica, longe de ser cinismo, é uma forma de preservar a dignidade. O amor, quando se transforma em dependência, deixa de ser virtude e passa a ser vício.
A mulher que já amadureceu e que procura o amor, não o faz por ilusão. Faz porque, ao contrário das expectativas, não desistiu da elegância da escolha. Não está à procura de redenção, mas de espelho. E sabe que, se houver entrega, ela será mútua ou não será.
[Continua na Parte II…]
Na próxima parte, veremos:
- A crítica ao culto do autoconhecimento e à autoajuda esotérica.
- A leitura simbólica como recurso estético e ético (não místico).
- O amor como construção narrativa — e não como experiência transcendental.
- Cartomancia como espaço de escuta, não de profecia.
- Conclusões práticas para quem se aproxima das cartas com seriedade.