
Parte II – Contra a Autoajuda, a Terapêutica e o Espelho Místico
VI. A Ilusão do Autoconhecimento: Quando o Eu se Torna um Tirano
A promessa do autoconhecimento tornou-se, nos últimos cinquenta anos, uma doutrina dominante do espírito — onipresente em manuais de autoajuda, terapias de superfície e toda uma indústria de espiritualidade mercadológica. Buscar “conhecer-se para amar melhor” tornou-se uma máxima repetida, embora raramente interrogada.
Contudo, há uma armadilha evidente nesse enunciado: conhecer-se não significa necessariamente tornar-se apto a amar. O conhecimento de si, quando feito em circuito fechado, tende a produzir justamente o contrário do que promete: um eu cada vez mais autocentrado, blindado contra a alteridade, ensimesmado em suas dores, manias e preferências.
Como advertia Rudolf Allers, psicólogo austríaco notavelmente avesso às simplificações da psicanálise:
“O autoconhecimento sem autodomínio é apenas mais uma forma de culto ao ego.”
Amar não é, portanto, consequência do eu esclarecido, mas do eu disciplinado, capaz de conter seus excessos, ceder sem anular-se, e manter fidelidade a princípios mesmo em contextos adversos. O amor exige ação reta, não introspecção excessiva.
VII. Cartas Como Ato Estético: Nem Oráculo, Nem Terapeuta
A cartomancia, nesse horizonte, não pode ser reduzida a uma ferramenta de autoconhecimento, tampouco a um placebo emocional. Sua força não está no que ela revela, mas na forma com que reorganiza o caos de nossas expectativas e demandas afetivas.
Uma leitura de cartas, quando bem conduzida, não cura, não consola, e não “empodera”. Ela desmonta. Dissimula. Instabiliza. E é nesse movimento que produz espaço de interpretação: o outro, as escolhas, o amor — tudo se torna texto, metáfora, silêncio.
Pedir às cartas que “digam a verdade” é como pedir à poesia que explique a dor. O valor não está na resposta, mas na pergunta que sobrevive após a leitura.
Uma mulher não sai da mesa de cartas com um destino. Sai com uma pergunta nova. Mais precisa. Mais íntima. Mais honesta.
Essa é a função mais alta da cartomancia: desmontar o mito do controle e do merecimento, devolver a responsabilidade da leitura ao sujeito.
VIII. O Amor Como Ato de Linguagem, Não Como Revelação
As tradições clássicas nos ensinaram que o amor é uma construção ativa, não uma descoberta súbita. Tomás de Aquino compreendia o amor como um ato de vontade racional orientado para o bem do outro. A afetividade, para ele, não era o critério: o que define o amor não é sentir, mas querer o bem — e querer de modo constante, responsável, ordenado.
Esse modelo contrasta frontalmente com a ideia contemporânea do amor como arrebatamento ou epifania. O amor que sobrevive ao tempo não é aquele que nos visita, mas aquele que cultivamos mesmo na ausência de entusiasmo.
Aqui, a cartomancia pode funcionar como prática simbólica dessa escolha: ao pedir uma leitura sobre a vida amorosa, não se busca previsão — mas forma. Um modo de nomear o que ainda não se sabe dizer.
E nesse sentido, a leitura não é mágica. É literária.
Não oferece destino. Abre estilo.
IX. Contra o Clichê da Cura Emocional
Existe um mercado muito lucrativo em torno da dor emocional feminina. Uma dor que, quando real, profunda e silenciosa, é capturada por discursos “curativos”, que oferecem rituais, simpatias e feitiços — como se houvesse uma metodologia para deixar de sofrer.
Mas há dores que não se devem curar. Há feridas que não precisam ser cauterizadas, mas apenas compreendidas como marcas de lucidez. A mulher que já viveu o suficiente sabe que a felicidade no amor não é uma promessa, mas uma capacidade de lidar com a imperfeição do outro e a sua própria — sem perder a estrutura.
Magda B. Arnold, psicóloga e teórica da emoção, insistia que o afeto não pode ser compreendido fora do juízo racional. Amar não é descontrole, é orientação afetiva segundo valores estáveis. A estabilidade é o que permite a permanência.
Não se ama com o coração. Ama-se com o caráter.
X. Uma Cartografia Silenciosa: O Valor do Amor Quando Já Não Se Espera
A mulher que já viveu amores e dissabores no amor que chega à cartomancia não é alguém em busca de encantamento. Ela busca, no fundo, um tipo de escuta não psicológica, não terapêutica — uma escuta simbólica, literária, crítica.
A cartomancia, quando feita com essa responsabilidade simbólica, funciona como um ensaio oral. O consulente oferece uma pergunta. A leitura devolve um enigma. E entre essas duas pontas, forma-se um texto — não sobre o futuro, mas sobre a estrutura interna da sua vida ética e emocional.
Ali, o amor aparece não como desejo, mas como modo de sustentação do cotidiano, como política íntima, como estilo de convivência com a impermanência.
Não há cura. Não há feitiço. Há linguagem.
[Ato Final – Parte III]
Na terceira e última parte, tratarei:
- Da cartomancia como prática silenciosa de discernimento ético.
- Do amor enquanto disciplina do olhar, e não expectativa emocional.
- Da elegância do afeto maduro como resistência à vulgaridade emocional.
- E da leitura simbólica como gesto de permanência num mundo que desaparece.